?Meu desafio é não morrer de tristeza?
Quem vê a professora aposentada Célia Diniz, 60 anos, falar e agitar-se sem esconder o sorriso ou deixar o cansaço dar as caras não imagina a quantidade de reveses que ela encarou. Casada há 35 anos, Célia foi mãe, nessa ordem, de Agnaldo, Mariana e Rangel em um intervalo de três anos, entre os 27 e os 30 anos. Em 1983, presenciou a morte do caçula, então com três anos. Há cinco, enterrou a única filha, aos 27. Rangel sucumbiu depois de cair da bicicleta e bater a cabeça. Mariana, de dengue hemorrágica. Os pais de Célia, Lico e Lia, foram amigos de Chico Xavier e presidiram o Centro Espírita Luiz Gonzaga, fundado pelo médium em Pedro Leopoldo (MG).
Hoje, é a professora aposentada quem ocupa esse posto. Espírita de berço, Célia foi moldada pela doutrina. Mas a dor também machuca as mães espíritas. ?Quando chegou a minha vez, lembro de estar passando a mão na testa e no cabelinho de Rangel, já no caixão, e perguntar para a minha mãe como ela tinha dado conta disso oito vezes (a mãe de Célia perdeu oito dos 18 filhos)?, conta ela, que ouviu de Lia que a filha só daria conta se segurasse na mão de Nossa Senhora. ?Não foram as palavras da minha mãe que me confortaram, mas a vida dela depois das perdas. Ela era uma mulher feliz, pacificada, carinhosa...?
É a esperança de um reencontro com os filhos que joga Célia para a frente ? Rangel, um ano após falecer, comunicou-se com ela e os familiares em uma carta psicografada por Chico. Ser a melhor pessoa possível para merecer essa bênção a faz dar palestras e ser atuante em casa e no centro Luiz Gonzaga.
?A maior dor de uma mãe é quando o sofrimento do filho não passa mais com um beijinho. Após a morte de Mariana, meu desafio é não morrer de tristeza.? E Célia demonstra que , com a força da fé, a normalidade e a felicidade pontuam a sua rotina.
É ponto pacífico entre leigos e especialistas: o luto de uma mãe que perdeu o filho é o mais difícil de ser enfrentado. ?É o vínculo mais forte que existe?, afirma Vera Lúcia Dias, mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), terapeuta das perdas e do luto, além de autora da tese de mestrado ?Mensagens Psicografadas e Luto? (PUC-SP, 2002) e do livro ?Quando a Morte nos Visita ? Uma Leitura Psicológica dos Processos de Luto e da Busca por Mensagens Psicografadas?, a ser lançado em junho de 2011.
Mineira de Uberaba, a psicóloga assistiu durante anos ao fenômeno das mães que buscavam as cartas de Chico Xavier em sua cidade. ?As senhoras que ouvi para minha tese diziam que vinham buscar notícias dos filhos?, conta.
Em sua pesquisa qualitativa, todas elas foram unânimes em dizer que receber as mensagens trouxe conforto e alívio. ?Uma mãe que perde um filho se faz muitas perguntas ? onde ele está, se está bem, etc. E as psicografias dão um certo conforto nesse sentido?, afirma.
Essa atividade consoladora de Chico passou a ser reconhecida nacionalmente quando o médium vivia em Uberaba, para onde se mudou em 1959, aos 49 anos. Foi em 1972, depois de participar do programa de televisão ?Pinga Fogo?, que ele assistiu a uma caravana de brasileiros baterem à sua porta à procura da certeza de que pessoas queridas seguiam vivendo após a morte.
Psicografar cartas, porém, era uma prática que o acompanhava desde os anos 30, ainda em Pedro Leopoldo. Com 17 anos, o mineiro psicografaria a primeira mensagem, assinada por um espírito amigo. Nesse mesmo dia, receberia uma carta assinada pela própria mãe, Maria de São João de Deus, que havia morrido quando ele tinha 5 anos. Segundo a médica Marlene Nobre, presidente da Associação Médico-Espírita do Brasil (AME-BR), a psicografia de Chico era inconsciente.
É como se ele se doasse por inteiro para que o espírito comunicante falasse por si com total individualidade. Coautora com Paulo Rossi Severino e a equipe da AME-SP de ?A Vida Triunfa?, que analisa a natureza da mediunidade do mineiro, Marlene explica que Emmanuel, o guia espiritual de Chico, funcionava com uma espécie de filtro e selecionava os espíritos que estivessem preparados para passar uma mensagem positiva. ?Ele escolhia aqueles prontos para fazer recomendações, como a de ajudar os mais carentes?, diz. ?O espírito do filho trabalharia junto aos pais nessa missão caritativa. Ajudar, portanto, era uma forma também de os pais se aproximarem do filho que partiu.? De fato, no conteúdo das mensagens sempre havia o chamado para que se cuidasse da dor do próximo.
?O Chico é tudo na minha vida?
?Desde menina achava que morreria aos 42 anos?, conta Lucy Ianez da Silva, hoje com 80 anos. ?Não morri?, diz. ?Mas perdi meu filho aos 42.? José Roberto Pereira da Silva, primogênito de Lucy, morreu no dia 8 de junho de 1972, aos 18 anos, em um acidente de trem entre Mogi das Cruzes e São Paulo. O jovem, que morava com a família na capital, escolheu estudar medicina na cidade vizinha justamente pela necessidade da viagem de trem, de que ele tanto gostava. ?Desde criança, antes de carrinho e de bola, a preferência do José Roberto era o trem de ferro?, diz Lucy. Quis o destino que ele morresse dentro de um.
Meses depois do acidente, o pai do garoto, que abandonara o trabalho, ia três vezes por dia ao cemitério, enquanto Lucy tentava se recuperar do irrecuperável na casa da mãe. ?Fui criada no seio católico: morreu, purgatório, céu, inferno, essas coisas?, enumera. ?Não tinha alento.? No auge de seu desespero, uma amiga a convenceu a ir até Uberaba. Nas duas primeiras visitas não veio nada, mas na terceira tudo mudou. ?Mãezinha, o que se perdeu foi o retrato que um dia, em verdade, deveria desaparecer?, dizia José Roberto na primeira carta que mandou, em 29 de setembro de 1973. Outras 20 seguiriam. ?Não queira morrer para reencontrar-me porque eu prossigo vivendo. Estamos juntos, só que de outra forma?, reiterou. Lucy voltou a sorrir, continuou retornando a Uberaba por duas décadas atrás de notícias do filho e sempre foi atendida.
?O Chico é tudo na minha vida?, diz ela. ?Nunca vi alguém como ele e nunca verei mais.? A católica Lucy passou a frequentar centros espíritas com afinco e a trabalhar nas obras sociais ligadas à religião, tanto em São Paulo quanto em Minas Gerais. No começo da década de 90, parou de visitar Uberaba.
?A gente já tinha tanto, não queria pegar o lugar de mães que iam sempre e nunca recebiam nada.? Hoje, a saudade que mareja os olhos azuis de Lucy não é mais só do filho e do marido, que já morreu ? ela inclui Chico Xavier.
Ampliar o conceito de família, passando a cuidar de outros filhos, de pessoas que não eram sangue de seu sangue, é o que une a trajetória das mães que receberam mensagens de seus filhos por meio de cartas psicografadas por Chico Xavier. ?Só há uma maneira de sair inteiro de uma tragédia como a nossa: esquecer um pouco de si e tentar fazer a vida ao redor ser um pouco melhor. A energia que recebo das pessoas que ajudo me alimenta?, conta a professora mineira aposentada Célia Diniz, 60 anos, que perdeu dois filhos e cuja história inspirou uma das personagens no filme ?As Mães de Chico Xavier? (leia o perfil dela e de outras mães ao longo desta reportagem).
Coordenadora do laboratório de estudo sobre o luto da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Maria Helena Franco reconhece o uso das mensagens psicografadas como uma maneira de viver o luto. ?Se tem sentido para elas, é digno de estudo para nós?, afirma. Mas a preocupação nunca será a de descobrir se as mensagens são ou não verdadeiras. ?O que nos impele a estudar o fenômeno são as motivações das pessoas que vão até os centros espíritas atrás de mensagens psicografadas.?
?O que me ajudou a continuar vivendo foi o Chico?
Quando Shirley Rodrigues recebeu a notícia de que seu filho, Sidney, havia cometido suicídio enquanto dava plantão no quartel da Aeronáutica no qual servia, em São Paulo, não acreditou.
Segundo ela, o menino de 18 anos não teria razões para isso. ?Além da dor da morte, fiquei com a dor da dúvida?, lembra ela, na época com 40 anos e hoje com 74. Católica, Shirley resistiu aos primeiros convites de uma amiga para visitar Chico Xavier, mas, no desespero, acabou aceitando. ?Lá, descobri que só de estar ao lado dele me sentia viva de novo?, diz ela, que visitou Uberaba seis vezes antes de receber a primeira mensagem de Sidney, 19 meses depois daquela quinta-feira, 2 de dezembro de 1976, quando ele morreu. ?Não cometi suicídio?, garantia o texto, que descrevia o tiro que matou Sidney como acidental. A foto do filho, estampada em uma medalha no peito da mãe, se mexe com o soluçar de Shirley, que chora sempre que lê as cartas.
O garoto disse que lustrava a arma quando ela escapou de sua mão, caiu no chão e disparou. O projétil ricocheteou até acertar a base de seu crânio, do lado esquerdo. No texto ele pedia, ainda, para que os pais assinassem os laudos oficiais, mesmo que apontassem suicídio, e assim encerrassem o assunto. ?Feito isso espero retornar-me à tranquilidade de que necessito?, dizia Sid, como era chamado, do além.
Assim foi feito, em nome da tranquilidade do filho e da família. Mas, apesar de querer acreditar, Shirley ainda tinha dúvidas quanto ao que ouviu de Chico. ?Eu pensava que ele dizia essas coisas para me confortar?, conta. A segunda carta, segundo ela, acabou com as dúvidas ao citar o nome de familiares já mortos que estariam guiando Sid no além. ?O que me ajudou a continuar vivendo foi o espiritismo e o Chico?, garante Shirley. ?Sem isto não teria aguentado.? A mãe diz sentir a presença do filho de quando em quando, mas lamenta nunca ter tido a oportunidade de vê-lo, como outras já viram. ?Acho que não devo estar pronta?, lamenta.
Até os anos 90, Chico Xavier demonstrava uma disposição impressionante nas reuniões públicas de psicografia do Grupo Espírita da Prece, que ele fundou em Uberaba. As sessões ocorriam nas noites de sexta-feira e sábado e eram presenciadas por cerca de 500 pessoas ? sentadas, debruçadas na janela e em pé ao redor da casa. Os trabalhos tinham início com a leitura de trechos do ?Livro dos Espíritos? e do ?Evangelho Segundo o Espiritismo?, do criador da doutrina espírita, Allan Kardec. A psicografia começava às 20h e seguia até as 4h. Chico colocava no papel cerca de dez mensagens por dia ? algumas de até 70 páginas, segundo Nobre, da AME?BR. ?Ele fazia questão de ler carta por carta e entregá-las aos familiares. Ao final da sessão, ainda contava causos, abraçava as pessoas e fazia graça com o próprio sofrimento?, conta o empresário Geraldo Lemos Neto, 49 anos, amigo que auxiliou Chico em suas reuniões entre 1985 e 1991.
Segundo Neto, que hoje administra a Casa de Chico, um centro de referência sobre a vida do médium mineiro em Pedro Leopoldo. Todo ano o líder espírita fazia questão de psicografar uma mensagem endereçada às mulheres no Dia das Mães. Sabia que, às mães, reconhecer um filho em suas cartas era acreditar de uma vez por todas que a vida continua, que o amor segue existindo, mas a morte não. Ao proporcionar a elas a alegria de ter o filho de volta pela psicografia, o mineiro injetava poesia no coração das mulheres, tal como seu xará carioca, de sobrenome Buarque.
?Ele ajudou, mas minha vida perdeu a cor?
?Não fui atrás de uma mensagem, minha esperança era entrar no centro e reencontrar meu filho?, admite a paulistana Neusa Collis, 69 anos, sobre a motivação da viagem a Uberaba no final de 1984. Em outubro, seu primogênito, Antônio Martinez Collis, então com 24 anos, foi assassinado durante um assalto. Nos meses que se seguiram, ela emagreceu 30 quilos, mal saía do quarto e se recusava a ver a luz do dia. ?Eu estava revoltada com Deus?, resume Neusa, que era católica e hoje é espírita.
No primeiro encontro com Chico Xavier, Neusa não recebeu mensagem do filho. Mas ela insistiu. Lembrava que, uma semana antes de morrer, Antônio havia contado que sentia sua morte se avizinhar. Seria sinal de maturidade espiritual? Talvez. A confirmação viria quatro meses depois, em fevereiro de 1985, quando o filho se comunicou através do médium de Uberaba. ?Você é a rosa da minha vida?, leu Chico Xavier, em carta endereçada à Neusa.
Naquele momento, a mãe teve certeza de que a mensagem era dele.
?Quando ainda era vivo, escolhi uma rosa e disse para mim mesma que ela o representaria?, lembra. Era muito mais prova do que ela precisava para legitimar o contato, que se estendeu por mais alguns recados psicografados por outros médiuns, na época único alento para a dor que sentia.
Hoje Neusa já não lê mais as cartas do filho ? a lembrança machuca mais do que conforta. Sai pouco do apartamento onde vive, a algumas quadras de onde Antônio foi morto, diz ter perdido a vaidade, embora continue uma senhora distinta e cuidada, e não consegue cantar parabéns nem nas festas dos netos.?O espiritismo foi o único lugar onde tive respostas?, afirma. ?Ajudou, mas minha vida perdeu a cor?, resigna-se, observando um porta-retratos com a imagem do filho. ?Um dia nos reencontraremos?, diz, convicta..
As Mães de Chico Xavier
Por: Rodrigo Cardoso e João Loes
REVISTA ISTOÉ (Edição: 2159 / 25.Mar.11 )
Imagens do Próprio Artigo da Revista
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