METAFÍSICA COMO PSICOLOGIA
Espiritualidade

METAFÍSICA COMO PSICOLOGIA


… Se, portanto, a memória não se nos mostra tal nem pela ordem de suas idéias complexas nem pela natureza de suas idéias simples, disso se segue que a diferença entre ela e a imaginação está na superioridade de sua força e vivacidade. Um homem pode entregar-se à sua fantasia e fingir que lhe tenha acontecido uma série de aventuras: ele não pode distinguir estas da recordação de outras semelhantes, a não ser porque as idéias destas, imaginárias, são mais fracas e obscuras. [...]
Mais recente é a memória e mais clara é a idéia; e quando, depois de um longo intervalo, voltamos à contemplação do objeto, encontramos a idéia sempre mais lânguida, quando não totalmente desvanecida. Por este motivo, em relação às idéias da memória, estamos freqüentemente em dúvida, quando se tornam demasiado fracas e cansadas; e não conseguimos determinar se uma imagem provém da imaginação ou da memória, quando ela não se apresenta com as cores vivazes que distinguem esta última faculdade. Parece-me recordar tal acontecimento, diz alguém, mas não estou seguro disso: o longo tempo o obscureceu de tal forma em minha memória que estou incerto se não é um parto de minha fantasia.
E assim como uma idéia da memória, perdendo sua força e vivacidade, pode degenerar a tal ponto que é tomado por uma idéia da imaginação, também, por outro lodo, uma idéia da imaginação pode adquirir tal força e vivacidade a ponto de passar por uma idéia da memória, e imitar seus efeitos sobre a crença e sobre o juízo. Os mentirosos, como é sabido, com a repetição freqüente de suas mentiras, acabam por crê-las e recordá-las como coisas verdadeiras: o costume e o hábito terão neste caso, como em muitos outros, a mesma influência da natureza sobre a mente, e esculpirão a idéio com igual força e vigor.
Disso vemos como a crença ou o assentimento, que sempre acompanha a memória e os sentidos, não consiste em outra coisa que a vivacidade de suas percepções, as quais nisto se distinguem apenas das idéias da imaginação. Crer é, neste caso, sentir uma impressão imediata dos sentidos, ou a repetição desta impressão na memória. Apenas a força e a vivacidade da percepção é o que constitui o ato primitivo do juízo e põe as bases do raciocínio, que daí passo para a relação de causa e efeito.
Todavia, ao pôr esta relação, é fácil observar que a inferência da causa para o efeito não é tirada da observação dos objetos particulares, nem de uma penetração de sua essência que possa descobrir-nos a dependência de um a partir do outro. Não há objeto que implique a existência de outro, se considerarmos estes objetos em si mesmos e não olharmos para além das idéias que deles nos formamos. Semelhante inferência deveria valer como um conhecimento e implicar a absoluta contradição e impossibilidade de conceber uma coisa de outra forma. Todavia, como todas as idéias distintas são separáveis, é evidente que não pode haver impossibilidade desse gênero. Quando passamos de uma impressão presente à idéia de um objeto, é sempre possível termos separada a idéia da impressão, e em seu lugar substituída outra idéia.
Apenas com o experiência, portanto, podemos inferir a existência de um objeto em relação à de outro. Essa experiência consiste nisto: nós nos lembramos de ter tido freqüentes exemplos da existência de uma espécie de objetos. E recordamos também que certos expoentes de outra espécie de objetos sempre os acompanharam com uma regularidade constante de contigüidade e sucessão. Assim, recordamos ter visto aquela espécie de objeto que chamamos de chama, e de ter sentido aquela espécie de sensação que chamamos de calor. Recordamos igualmente sua constante ligação em todos os casos passados. Sem tantas cerimônias chamamos a primeira de causa e o segundo de efeito, e inferimos a existência deste a partir da existência daquela. Em todos os casos particulares desta conjunção, tanto a causa como o efeito foram percebidos pelos sentidos e juntos permaneceram presentes na memória. Mas, quando nos pomos a raciocinar sobre eles, percebemos ou recordamos apenas um dos termos, e suprimos o outro em conformidade com a experiência passada.
DAVID HUME



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