A primeira cousa que me desedifica, peixes, d vós, é que vos comeis uns aos outros.
Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior.
Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos.
Se fora pelo contrário, era menos mal.
Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.
(...) Os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros. (...) Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer, e como se hão-de comer.
Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo.
Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os credores; comem-no os oficiais dos órfãos, e o dos defuntos e ausentes; come-o o Médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-o a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.
(...) Nestas palavras, pelo que vos toca, importa, peixes, que advirtais muitas outras tantas cousas, quantas são as mesmas palavras.
Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão declaradamente a sua plebe: Plebem meam, porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na República, estes são os comidos.
E não só diz que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qui devorant.
Porque os grandes que tem o mando das Cidades e das Províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos, senão que devoram e engolem os povos inteiros. (...) E de que modo os devoram e comem?
(...) não como os outros comeres, senão como pão. A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne , há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses do ano; porém o pão é de comer todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem (...)
Parece-vos bem isto, peixes?